terça-feira, 31 de julho de 2012

Relato de Ocorrências Anômalas III


"Lembro-me perfeitamente que enquanto os adultos acreditavam que eu possuía amigos imaginários eu enxergava, ouvia e sentia alguém que mais ninguém podia ver, ouvir e sentir. Alguns não eram presenças agradáveis, outros eram. As religiões consideram como demônios ou entidades maléficas. A Psiquiatria e a Psicologia diriam que são alucinações auditivas, visuais ou uma fase normal da infância. Mas na infância, não haviam estes profissionais a disposição como hoje.

Até hoje não compreendo bem porque ia para debaixo da cama. Ás vezes, eu acordava ali. Outras vezes era o lugar que escolhia estar. Ali me pegava conversando com alguém, embora não houvesse ninguém. Tinha certeza de que alguém invisível estava ali me ouvindo. Os adultos diziam ser anjos. A sensação de estar ali embaixo era boa. Era como se estivesse acostumada a aquela situação de pouco espaço... Era confortável e seguro.

Outras vezes, me fechava no guarda roupas. Ali, acabava pegando no sono ou ficava conversando com aquele alguém invisível que me ensinava coisas e explicava outras sobre mim mesma, sobre meus pais... Coisas que serviam para compreender eu mesma, eles... Me ensinava como ler as feições. Naquela época as crianças ficavam na roda de conversa dos adultos mas não podiam falar nada, apenas ouvir. Havia um ensinamento de que aprende aquele que ouve e observa. As conversas eram longas e massantes. Minha inquietação logo era evidente, fazendo com que minha mãe me repreendesse. Era difícil demais ficar quieta. Era nestas conversas que eu desenvolvia o que aprendia nas conversas com aquela voz. Eu passei a ouvi-la quando estava entre os adultos que não paravam de conversar e contar histórias. A voz dizia para observar sinais nas feições em cada fase das conversas. Quando havia um exagero na narrativa, era uma feição. Quando havia mentira, outra. Quando era sincero, também. Quando a lembrança do fato narrado causava algum mau estar do mesmo modo. Depois de poucos anos, passei também a ler as expressões corporais. Observar as pessoas era frequente. Ouví-las com atenção foi confundido com paciência. Hoje, evito sempre que posso o contato com as pessoas. Com o passar do tempo elas se tornaram menos francas, menos honestas, mais esnobes, mais carentes, principalmente consigo mesmas. Elas acabam se revelando assim como são. Aquele lado mu intencionado dos humanos.

Estava eu certa vez dentro do guarda roupas que não ficava completamente fechado. Ali dentro eu me sentava em cima de vários cobertores dobrados que eram guardados ali durante o dia. Meu peso fazia uma pressão sobre eles, impedindo que a porta se fechasse. Por uma brecha estreita, eu podia ver o que se passava lá fora. Através da brecha entrava um facho de luz da grande janela que encontrava-se bem enfrente e que me permitia desenhar. Naquele dia, entrei com um caderno de desenho, estava sozinha, trancada dentro de casa. Estava intertida com meus rabiscos quando ouvi um barulho do lado de fora. Olhei pela brecha e vi um vulto negro. Tinha as formas de um humano, mas não tinha face, não usava roupas. Era como se estivesse todo vestido de uma meia grossa preta. Ele remexia as coisas. Levantava a colcha, abria as gavetas as revirando... Não senti medo mas, procurei ficar quieta para que ele não soubesse que eu estava ali. Depois de pouco tempo não o vi mais e não havia mais barulho. Fiquei ali até que alguém chegasse. Minha mãe entrou já brigando comigo perguntando porque eu havia feito aquela bagunça toda. Tentei contar a ela o que havia visto mas ela irritou-se ainda mais dizendo o quanto era trabalhoso manter tudo em ordem. Á noite, ela contou ao meu pai a 'arte' que eu havia feito. Contei a ele que ficou sério. Carinhosamente me disse: Não há como alguém ter entrado aqui... Os vidros das janelas possuem uma trava por dentro e sua mãe trancou a porta, filha. Ninguém acreditou.

Mas o poço foi o que mais preocupou meus pais. Tínhamos um poço no quintal de onde retirávamos a água que usávamos. Naquele tempo o saneamento básico não existia ali como antes. Os costumes de quem residia ali eram de interioranos. Lembro-me até hoje da textura das cordas grossas enroladas na manivela de madeira esculpida por meu pai que utilizou-se de um tronco inteiro. As mãos possuem memória: a aspereza da corda ainda está nas minhas mãos. A superfície lisa daquela madeira branca ainda posso sentir sem nunca mais ter tocado. 

Eu debruçava-me no poço para ficar olhando meu reflexo lá embaixo. Fascinava-me ao lembrar meu pai contando-me que bem lá embaixo na terra havia um rio que corria. E ao fazer aquele buraco, um pouco do rio aparecia para nós.

Lembro-me como se fosse hoje... Era uma tarde agradável. Minha mãe estava ocupada em seus afazeres e minha irmã - ainda bebê - dormia seu sono da tarde. Eu não olhava para dentro do poço. Estava sentada na beirada dele - de costas para ele - ocupada em retirar as pétalas de uma margarida. Ouvi um som muito estranho. Nunca havia ouvido algo assim. Como se fosse uma única batida em um bumbo gigante que fazia um eco. Fiquei de pé assustada. Pensei que ninguém ouviu, pois minha mãe não saiu e os vizinhos também não. Não haviam muros e nem cercas. O quintal dos vizinhos eram bem visíveis.

De repente, vi o que chamei de 'pequeno cometa branco' entra no poço em uma velocidade absurda. Corri para ver e ví apenas as águas agitadas. Corri para ver movida por minha curiosidade, mas não considerei algo anormal. Assim é até hoje. Assuntos e relatos supostamente irreais não me surpreendem e também não querem dizer que eu seja credula ou incrédula demais.

Passei a vigiar o poço na esperança de ver novamente o 'cometa'. E passei a conversar com o poço, gritando o suficiente para que - seja lá o que estivesse ali embaixo - me ouvisse. Comecei a me sentir frustrada porque nada nem ninguém respondia. Até que por outras vezes, passei a ver o 'cometa' ora entrando, ora saindo do poço. Minha mãe me reprendia dizendo que logo me achariam louca por ficar gritando no poço. Meu pai ria mas, decidiu fechar o poço. Sua preocupação não era se eu estava ficando louca ou não, mas do risco  que eu caísse ali dentro. Ele estava certo: eu já estava tentando descobrir um modo de descer ali escalando as paredes de tijolinho. Fez uma tampa de concreto e instalou uma bomba para que não mais fosse preciso puxar a água com o balde e a corda. E eu fiquei triste por não mais poder descobrir o que havia lá dentro."

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